Mecanismos consensuais de soluções de conflitos: o negócio jurídico processual como instrumento da justiça multiportas

A expressão justiça multiportas é inspirada na expressão norte-americana “Multi-Door Courthouse’’, apresentada pelo Professor Frank Sander no ano de 1976, e se refere a ideia de ofertar diferentes meios para a resolução de conflitos, de modo que, para cada espécie de lide, seria adequada uma forma de solução. Ainda, de acordo com Leonardo Carneiro da Cunha, o termo multiportas decorre de uma metáfora: seria como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas, a depender do tema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação, ou da conciliação, ou da arbitragem, ou da própria justiça estatal[1].

No Brasil, a Resolução de nº 125/2010 do CNJ foi responsável por organizar o tratamento adequado dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário, visando melhorar a qualidade da sua prestação de serviços. Trata-se de uma mudança de paradigma muito importante, a qual denota uma preocupação do Judiciário em não apenas estimular a autocomposição, mas, também, em dar um tratamento adequado a cada disputa. Esse cuidado foi reforçado com a publicação do CPC/2015, que dedica um capítulo completo para as normas da mediação e conciliação e prevê uma fase obrigatória, anterior ao oferecimento da defesa do réu, para tentativa de autocomposição.

Assim, finalmente, o regramento processual civil foi estruturado para a solução consensual de conflitos. Nesse sentido, os §§2º e 3º do art. 3º do CPC, os quais se encontram dentro do capítulo sobre as normas fundamentais do processo civil, dispõem que “O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos” e “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Púbico, inclusive no curso do processo judicial”.

Dentre os diversos dispositivos que estimulam a resolução consensual dos conflitos no CPC/2015, o negócio jurídico processual vem ganhando destaque como mecanismo hábil a propiciar uma maior celeridade na obtenção da pacificação social. Trata-se de atos que produzem efeitos imediatos, independentemente da manifestação do juízo (art. 200 do CPC), com exceção das hipóteses previstas legalmente[2].

De acordo com Fredie Didier Junior, negócio processual é o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático confere-se ao sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais. Negócio jurídico processual, portanto, é um negócio sobre o processo, para alterar as suas regras[3].

Fato que merece destaque é que, além de prever algumas hipóteses de negócios processuais – como, por exemplo, o calendário processual (art. 191, §§ 1º e 2º), o acordo da suspensão do processo (art. 313, II), o adiamento negocial da audiência (art. 362, I) –, o CPC prevê uma cláusula geral no caput do art. 190, a qual possibilita a elaboração de negócios jurídicos processuais atípicos para ajustar o procedimento às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Conforme pontuado por Fredie Didier Junior, são exemplos de negócios jurídicos atípicos autorizados pelo caput do art. 190, o acordo de impenhorabilidade, o acordo de instância única, o acordo de redução ou ampliação dos prazos, o acordo para limitar o número de testemunhas, o acordo para tornar uma prova ilícita etc.[4].

Em que pese a norma ampliar as possibilidades de negócios jurídicos processuais, a liberdade para negociar as regras processuais não é absoluta. Desse modo, dispõe o parágrafo único do art. 190 do CPC que o juiz controlará a validade dos negócios jurídicos processuais atípicos, afastando a sua aplicação nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.

Por conseguinte, para a validade dos negócios jurídicos processuais, é necessário, assim como em qualquer negócio jurídico, (i) que as partes sejam capazes; (ii) que o objeto seja lícito; e (iii) que haja observância de forma prevista ou não proibida por lei.

No tocante ao segundo requisito, importante destacar o Enunciado de nº 135 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, segundo o qual “A indisponibilidade do direito material não impede, por si só, a celebração de negócio jurídico processual”. Isso porque, ao negociar uma regra processual no âmbito de uma ação que verse sobre direito indisponível, não se está dispondo ou renunciando sobre o direito material, mas sim sobre a forma do exercício desse direito. Desse modo, é possível que um Termo de Ajustamento de Conduta, celebrado entre o Ministério Público e o violador de um direito coletivo, por exemplo, trate de negócios jurídicos processuais que alterem o regramento processual, a fim de dar uma maior eficiência e celeridade à reparação do dano.

Ainda, considerando a realidade pós-pandemia, na qual as audiências estão, gradativamente, voltando a serem realizadas presencialmente, outra situação interessante para se pensar na utilização do instrumento jurídico é a convenção entre as partes para que o processo ocorra de forma 100% virtual, diminuindo os custos que envolvem o processo judicial. 

            Ante o exposto, considerando o atual cenário do Poder Judiciário brasileiro, marcado pela saturação das varas[5] e consequente lentidão processual, é papel do operador do direito buscar soluções que tragam maior fluidez às demandas, bem como, atendendo às tendências trazidas pela Resolução de nº 125 do CNJ e pelo CPC/2015, que sejam mais adequadas a cada tipo de conflito. Nesse contexto, o negócio jurídico processual se mostra como um importante mecanismo da justiça multiportas, dada a cláusula geral do art. 190 do CPC que amplia as possibilidades das soluções consensuais em busca da efetivação dos diretos materiais.

Maria Beatriz Tenório e Marina Lippo Lages


[1] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Justiça multiportas: mediação, conciliação e arbitragem no Brasil. Revista ANNEP de Direito Processual, 2020.

[2] Cita-se a desistência da ação como exemplo de negócio processual jurídico que necessita da homologação judicial (Parágrafo único do art. 200 do CPC).

[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17ª edição. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015.

[4] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Introdução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17ª edição. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2015.

[5] De acordo com o relatório “Justiça em Números 2022”, publicado no site do CNPJ, o ano de 2021 foi finalizado com 77,3 milhões de processos em tramitação